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Vela e

Baralho na mão

Em cima da mesa, há previsão

Foto: Keren Bonfim

A casa verde de madeira com cercado no quintal guarda um segredo. A janela principal da cozinha mostra uma sombra humana lá dentro. É dona Analdina Ferreira, de 58 anos, que caminha até o portão para atender mais um cliente.

 

Há três anos, aproximadamente, a diarista resolveu deixar a vassoura e o pano de chão escondidos atrás da porta. Passou a se dedicar à leitura das cartas de baralho.

 

Depois de algum tempo de estudo, as primeiras consultas foram feitas para amigos e pessoas da família. Ela agora lê o “presente, o passado e o futuro”, conforme relata. Virou a ‘Mãe Ana’ da vila Ouro Verde.

Os que prometem desvendar o futuro andam espalhados pelos postes das cidades, pelos folhetins distribuídos nos pontos de ônibus, pelos anúncios de jornais, pelas velas dos becos e pelas falas dos botecos.

A cortina laranja da janela ilumina a sala como se fosse um final de tarde. É um pôr-de-sol de mentira. Com isso, o ambiente ganha uma aura de misticismo. É lá que Dona Ana costuma atender.

 

Dividindo o espaço com a parede recheada de fotos da família e pôsteres do cantor Michel Teló, do jogador Neymar e da banda Nirvana, está o altar das consultas. Na mesa, as cartas, uma vela branca, um copo d’água, o incenso e algum tipo de folhagem. “Eu prefiro o trevo porque dá mais sorte”, conta.

 

Todos os dias, a cartomante recebe em média duas pessoas para as consultas. “As moças adoram”, comenta. Como dona Ana costuma se emocionar com as histórias de amor relatadas pelas meninas, procura dar um jeito no coração magoado. Lá vai uma simpatia ou mais uma velinha para “fisgar” o moço. Mas ela garante: “sempre faço alguma coisa para o bem”.

Estudo da cartomancia não é para todos. Alguns nascem sabendo

“É um dom espiritual. Não chega a ser um serviço porque a espiritualidade não dá serviços”

“Prever o futuro é uma coisa que eu acho impossível”.
 
Cristina Rogalski, cartomante

Foto: Keren Bonfim

Não é só o futuro dos clientes que Dona Ana prevê. A cartomante já embaralhou as cartas da própria vida e cortou duas vezes o baralho com a mão esquerda, conforme manda o livro ‘Cartas Ciganas’, companheiro indispensável da cartomante durante as consultas. A sorte foi lançada e a ‘Mãe Ana’ pretende se aprofundar mais nos estudos, comprar baralhos novos e fazer o registro comercial do serviço realizado.

 

Nem todas as cartomantes que atuam no mundo das leituras de vida, no entanto, aprendem a consultar uma carta. Algumas até acreditam que isso seja impossível. Se o mundo é espiritual, a interferência humana não prepara para cada orientação.

“Eu nasci pronta para isso”, descreve Cristina Rogalski, de 41 anos. Quando tinha 17, a moça percebeu que estava apta para lidar com a cartomancia. “É um dom espiritual. Não chega a ser um serviço porque a espiritualidade não dá serviços”, explica Cristina enquanto mostra uma carta de tarô. Ao relembrar a adolescência, a cartomante assegura que aprendeu a ler as entrelinhas misteriosas do baralho naturalmente.

 

Quanto ao futuro, Cristina só tem certeza do almoço que prepara naquela manhã de terça-feira e que precisa ficar pronto em instantes.  Para ela, o ser humano pode e vai além de qualquer previsão. Por ser dotado de vários sentidos, é capaz de mudar tudo ao redor. “Prever o futuro é uma coisa que eu acho impossível”, completa. Mas, enquanto a vida segue imprevisível e misteriosa para uns, o telefone de Cristina não irá parar de tocar. Naquela terça-feira, o “triim-triim-triim” do celular grita por mais uma consulta. Fica combinado mais um encontro para o final da tarde.

 

O “divã” em que Cristina atende permanece no fundo de casa, em um cômodo de duas repartições. “Dizem que é psicologia de pobre”, comenta. Lá, a cartomante recebe até quatro pessoas diariamente. Em mais de duas décadas de consultas, Cristina já consegue relacionar a idade e os tipos de dificuldades mais comuns das pessoas que a procuram. Dos 17 aos 32 anos, são os relacionamentos amorosos e o lado emocional que imperam. A partir dos 32, os problemas familiares, negócios e trabalho se tornam a principal fonte de “dor de cabeça”.

Cartomancia tem um pé, uma mão ou

um baralho

escondido lá religião

Caía uma garoa fina naquela noite de terça-feira e os raios rabiscavam o céu a todo o momento. Numa salinha próxima a garagem da casa, Soleni Prestes preparava um “trabalho espiritual”. A chegada dos 44 anos mudou a vida da cartomante. As 20 pessoas que passavam todos os dias pela casa da moça foram, aos poucos, diminuindo.

 

Dois infartos vieram, deram uma “breca” naquela rotina. Receber a energia espiritual de toda essa gente e conseguir se recuperar após os atendimentos cansava demais. Com isso, o perfil dos clientes mudou. Hoje as consultas são feitas preferencialmente para clientes que há dez ou 15 anos frequentam a casa da cartomante.

Foto: Keren Bonfim

Quando Soleni abre as cartas, entra em contato com um portal espiritual. Lá está a entidade cigana Maria Carmelita da Estrada, pronta a guia-la na leitura do mundo. “É ela quem vai me falando tudo o que está nas cartas. Se não tiver uma orientação espiritual, você não vê nada”, explica Soleni.

 

Maria Carmelita da Estrada age junto com Soleni desde que a cartomante era apenas uma mocinha de 14 anos. Como a família da moça possuía tradição na religião de Umbanda, a prática da leitura de cartas já era feita pelos avós e foi repassada à Soleni pela mãe. “Muitos não creem, mas isso tem que vir de raiz, de sangue, de ventre puro, da religião. Não é para qualquer pessoa”, enfatiza ao relatar sobre o trabalho realizado.

 

Foi ali na casa amarela que Soleni nasceu e é lá que vive hoje. Riquezas? Já teve, mas garante que abriu mão de todo o dinheiro para viver da cartomancia. Ao tomar das mãos do cliente a carta e poder interpretá-la com a ajuda da cigana, Soleni sente-se um amparo às pessoas. Ela sabe que nem sempre as cartas dizem o que o consulente deseja ouvir. Se for coisa ruim, a pessoa precisa receber a notícia mesmo assim.

É que nem cachaça, vai de boca em boca...

Os que prometem desvendar o futuro andam espalhados pelos postes das cidades, pelos folhetins distribuídos nos pontos de ônibus, pelos anúncios de jornais, pelas velas dos becos e pelas falas dos botecos.

 

É difícil encontrar alguém que nunca tenha visto ou pelo menos ouvido falar das famosas sortistas. O anúncio de uma delas, por exemplo, ainda é preservado no antigo Mercadão Municipal. Entre o desgaste do tempo e atrás de arbustos, as letras verdes pintadas na parede estão firmes e fortes. Ali, lê-se “Dona Claudete, sortista e benzedeira. Telefone 99712437”. Hoje, o número de telefone já leva para outro caminho que não os das cartas.

 

 “É que nem cachaça, vai de boca em boca”, comenta a cartomante Cristina Rogalski. Ela sabe que, quem gosta de “ver sorte”, vai em qualquer lugar. Em alguns casos, a pessoa não busca a previsão do futuro, mas sim uma orientação. “O que ela tem aqui?”, questiona Cristina, e já se prepara para responder: “É alguém que a ouve, que a orienta dentro do possível, mas não julga”.

 

A sortista sabe que, no grau das prioridades da vida, não guarda cadeira em primeiro lugar, mas se considera uma profissional naquilo que faz e por isso mesmo cobra R$ 80,00 por consulta: “É o meu ganha-pão, o meu trabalho, o meu sustento”.

 

 

Quando Soleni abre as cartas, entra em contato com um portal espiritual

Na casa de Soleni Prestes, cada leitura de baralho sai por R$ 40,00. Além de cobrir as despesas com os instrumentos de trabalho, como vela e incenso, o valor cobrado garante a sobrevivência. “Tenho dois filhos, um neto, tenho a vida. Pra mim, a realização é muito grande”, comenta. Já ‘Mãe Ana’ é um pouco mais barateira e abre um baralho pelo preço máximo de R$ 20,00, mas nem por isso o ritual de preparação antes das consultas é deixado de lado. Ela precisa se concentrar e fazer uma oração para conseguir decifrar o que as cartas dizem.

Foto: Keren Bonfim

Foto: Keren Bonfim

“Tem gente que nasce com “mão de búzios”, que é o meu caso”.

Leandro dos Santos, sacerdote de Umbanda 

Foto: Keren Bonfim

Se o presente é inseguro, o futuro é promissor

Cercada de mistérios é o nascimento da cartomancia. E de muitas andanças, é claro. Alguns historiadores apontam os ciganos como os principais responsáveis pela difusão da prática no Ocidente.

 

O grupo já era conhecido, no século XIII, por duas formas de adivinhação: a cartomancia e a quiromancia, que é a leitura das linhas da palma da mão. Assim como os ciganos andaram, viajaram e chegaram ao Brasil por volta de 1574, a cartomancia veio ali, amarrada no vestido da cigana.

 

Ao pisar em terras brasileiras foi, aos poucos, entrando no universo afro-brasileiro. “É muito recente a saída da cultura cigana e a incorporação nesse processo que mistura um pouco astrologia com formas diferentes de leitura de mão e de tarô. Enfim, de outras formas divinatórias que acabam caracterizando o que chamamos popularmente de cartomantes”, explica o historiador Marco Aurélio Pereira.

 

Ele, que possui pesquisas na área da História das Religiões, sabe que, embora a cartomancia possa ser vista de uma forma mística e espiritual, não faz parte de nenhum ritual religioso. 

 

A tradição e a fé popular que carrega torna a leitura das cartas um saber do campo esotérico. Segundo o professor, não há suporte acadêmico, filosófico nem religioso para classificar a cartomancia como uma prática de comunicação com o mundo do divino. “A boa cartomante sabe disso e nunca se propõe a se comunicar com Deus. É sempre com o mundo espiritual, com entidades ou o mundo místico”, defende.

 

Por outro lado, desvendar o que o futuro reserva e encontrar, talvez, soluções para os problemas cotidianos sempre foi a prática de algumas religiões. O Antigo Testamento da Bíblia, por exemplo, traz relatos de um sorteio realizado pelos sacerdotes hebraicos. No processo de adivinhação, jogava-se duas pedras chamadas Urim e Tumim. Quando lançadas ao ar, a posição em que caíssem seria de acordo com a vontade de Deus.

 

Não é preciso, porém, viajar para períodos da História tão distantes para descobrir religiões que se utilizem da prática de adivinhação. No Candomblé, o ritual religioso que envolve a previsão do futuro são os búzios. Aos olhos comuns, pequenas conchas jogadas sobre uma peneira. Na visão religiosa, as 16 conchas marinhas arremessadas simbolizam um Orixá diferente, que representam divindades.

 

 

 

Peneira

 

       aqui    

 

                      e

acolá

Foto: Keren Bonfim

Foto: Keren Bonfim

Em        cada

    peneirada,

         um      

               Orixá

Era uma sexta-feira quando o sacerdote de Umbanda e iniciado de Candomblé, Leandro Ferreira dos Santos, rezou e saudou os Orixás antes de verificar qual divindade se manifestava na peneira. “É Iansã que está entre nós hoje”, comenta em seguida. Sacerdote de Umbanda há 20 anos e iniciado de Candomblé, Leandro sabe que, no jogo de búzios, dá para perguntar sobre o passado, o presente e o futuro.

 

Dentro do Candomblé, de praxe os búzios só podem ser jogados por quem tem sete anos ou mais de religião. Mas esse não é o caso de Leandro, que participa do jogo por considerar que possui dom. “Tem gente que nasce com “mão de búzios”, que é o meu caso”, afirma.

 

Para cada consulta que Leandro faz, é cobrado um valor fixo de R$ 70,00 e ele assegura que, em todo e qualquer jogo, é necessária pelo menos uma moeda na peneira: “Quem vai levar e trazer as informações é o orixá Exu e ele não faz nada sem um agrado”.

 

O sacerdote agradece a Oxalá, maior divindade, e a Olorum, nome que se dá no Candomblé ao Ser Supremo. Arremata, orgulhoso, que todas as consultas que faz, tanto para pessoas leigas quanto por quem vai em busca da mediunidade, traz resultados: “Todos que já caíram na minha peneira estão satisfeitos!”.

Do Paraná à Zona da Mata Mineira: uma troca de estudos

Em 2000, a socióloga e doutora em Ciência da Religião, Haudrey Germiniani, realizou uma pesquisa sobre as benzedeiras, cartomantes e videntes que atuavam na Zona da Mata Mineira.

 

Haudrey saiu à procura de folhetos de propaganda distribuídos em locais de grande concentração de pessoas e coletou também anúncios de jornais.

 

Depois disso, o serviço foi entrevistar as profissionais a fim de entender como essas mulheres readaptavam o cotidiano de trabalho. O resultado da pesquisa gerou a dissertação de mestrado ‘As profissionais do Sagrado: Sobre a correspondência entre religião, magia e consumo no fenômeno da benzeção’, que Haudrey apresentou na Universidade Federal de Juiz de Fora.

Durante o estudo, a pesquisadora pode perceber que a cartomancia era uma prática mágica que poderia ou não estar associada a várias religiosidades. Ela preferiu entrevistar mulheres que cobravam pelo ofício e atendiam pessoas das classes média e alta. “São mulheres que estudam e viajam para realizar cursos. Muitas sabiam tarô e outras práticas. Sempre misturam tudo: religião, magia, terapia e amizade”, relata.

 

Se as mulheres entrevistas realizassem um ofício com hora marcada, possuíssem uma agenda de consultas e ainda cobrassem por cada trabalho mágico realizado, Haudrey as denominou como “profissionais do sagrado”. Nesse caso, a fé popular estaria sendo comercializada? A pesquisadora assegura que não, pois o que é vendido são as práticas mágicas, e não a fé.

Reportagem produzida em abril de 2014.

 

Keren Bonfim

© 2015 por KEREN BOMFIM FOTOGRAFIA. Todos os direitos reservados

 

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