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Quando as três da tarde é perigosa

Lá pelas três da tarde, de uma terça-feira modorrenta, a gente começa se a perguntar se é isso mesmo que quer. Ao longo do tempo, acumulou dívidas, falsos amigos, um ou outro amor passageiro, tentou arrumar um emprego, construir uma vida, fazer qualquer coisa para “dar se bem”.

 

O engraçado é perceber que as maiores reflexões acontecem debaixo do chuveiro, porque é nesse momento em que se lava o corpo e a alma. Aí, a água quente parece que estimula o pensamento e tudo que a gente deveria fazer e não fez parece vir à tona.

 

Nesse momento, questionamos como seria a vida se fôssemos de outro jeito, tivéssemos falado menos e ouvido mais, conversado com pessoas estranhas ou sei lá, pegado o primeiro ônibus que parou no ponto.

 

Mas as regrinhas impediram. Nós obedecemos aos conselhos dos mais velhos e fizemos tudo conforme o protocolo: nascemos, crescemos, estudamos, tivemos sonhos uma ou outra vez e depois nos conformamos com a vida que estávamos levando.

 

Na estrada, perdemos a vontade e nos deixamos levar pelas milhões de oportunidades que pareciam surgir. Agora, nem sabemos aonde vamos chegar. Vivemos sem causa, nem lutamos mais por nada. Colocamos nossos sonhos dentro de algumas sacolinhas ou malinhas e os deixamos pendurados no primeiro cabide de um “não”, de uma bronca, de argumentos contrários, de qualquer coisa.

 

Por isso o espanto quando encontramos quem vive uma outra vida, longe do burburinho do centro e dessa busca constante pela estabilidade econômica. Lá na curva da estrada, onde um cemitério-parque cruza com um mosteiro, vivem nove monjas enclausuradas. Elas só ultrapassam o portão em casos muito específicos, como a ida a um dentista ou em dias de eleições. E para quem visita pela primeira vez um lugar como esse, a ‘pior’ aparência é a de que elas são felizes, apesar de estarem atrás das grades que separam o mosteiro do mundo de fora!

 

Logo, um pensamento vem à mente: como uma monja, que mal conhece as ruas da cidade, pode ser feliz e expressar isso de uma forma muito espontânea? Que acorda de madrugada e vive a maior parte do tempo em momentos de oração? O que esquecemos é que ela luta por um ideal. E viver é essa busca constante por uma “ideologia pra viver”.  Fora isso, o resto é só vida, a água quente que escorre pelo banho e o azulejo azul marcado pelo sol das três da tarde.

 

 

Novembro de 2014.

Liberdade do grito em uma quinta-feira qualquer

Ali todo mundo se espreme no mínimo espaço que existe no corredor. Os bancos já estão todos ocupados e sobra apenas os degraus próximos à porta. Eles não foram feitos para servirem como assentos, mas isso não é empecilho para que três garotos se acomodem naqueles espaços. A mochila nas costas denuncia que voltavam da escola em uma quinta-feira qualquer. Nas mãos, um deles carregava um rádio.

 

Era apenas mais um ônibus que se preparava para deixar o terminal de Uvaranas. Ao primeiro anúncio de “porta fechando”, percebe-se uma fresta. Um pequeno buraco onde cabia exatamente uma mão de criança. E foi naquele vão entre o ônibus em movimento e a rua parada que eles encontraram a liberdade que precisavam.

 

Antes a diversão se resumia em dar tchau para quem ia ficando no caminho. Não importava se conheciam ou não os caminhantes. A liberdade estava ali, naquela vontade de mexer com o outro sem sofrer as consequências. Depois do aceno, um deles teve a ideia de gritar “gostosa” para uma moça. Ela ouviu, mas não percebeu de onde vinham aquelas palavras.

Gritavam com quem jamais teria a opção de resposta. E aí morava a brincadeira. Lá pelas tantas, o que segurava um rádio resolveu ligá-lo e deixar que o funk invadisse o ambiente. Todos os outros passageiros sabiam que a música alta é proibida dentro do ônibus, mas quem ousava mexer com aqueles que resolveram transgredir o próprio espaço de sonhos espremidos em bolsas cheias, braços cansados e o olhares vazios? Ninguém os mandou parar, ninguém os avisou que a porta automática poderia ser aberta a qualquer momento e, nesse instante, talvez não sobrasse tempo para se segurarem ali dentro.

 

Essas considerações, porém, nem passaram perto da cabeça daqueles jovens. Pois a juventude nada mais é que relâmpago ao pé da eternidade. Talvez eles nunca saibam o que é liberdade. Entretanto, eles a viveram em um trajeto passageiro de vinte minutos. Afinal, como escreveu Cecília Meireles, “liberdade é essa palavra que o sonho humano alimenta: que não há ninguém que não explique e ninguém que não entenda”.

Agosto de 2014.

Ninguém os viu, até que um deles morreu

Eles eram um casal. Ele tinha barba e ela andava arrastando os pés. Caminhava ele na frente e ela atrás e a segui-los, os cachorros. De longe pareciam felizes. Uma família completa: o homem, a mulher e os cães. Nos finais de tarde, ele se encostava nas grades da universidade e observava o movimento. Os cachorros ao pé do homem. E ela às vezes carregava uns folhetos de propaganda. Talvez distribuísse para os carros que esperavam o semáforo abrir. Ninguém sabe.

 

À noite, o movimento próximo à universidade crescia. Automóveis fervilhavam pelos quatro lados do grande bloco azul e branco. Lá estava ele, de jaqueta preta e com os cachorros atrás. Às vezes carregava umas moedinhas na mão. Um desconhecido poderia até pensar que se tratava de mais um flanelinha. Talvez fosse. Mas ninguém descobriu. Ninguém queria descobrir.

 

Eram dois pesos mortos instalados ali na esquina. Iluminados apenas pelo brilho das luzes da rua e apagados pelos passos de quem os via todos os dias e não os enxergava. A hora da estrela deles, porém, estava reservada. Numa noite fria de Ponta Grossa, a mulher foi encontrada morta em um buraco de esgoto de uma antiga fábrica da cidade. O corpo chamou a atenção. Nesse momento, descobriram que o casal tinha vida, e também problemas pessoais. Aliás, ela era a Karina Aparecida Viana Pereira e ele a matara, o andarilho Roberto Sabiski.

 

Roberto confessou o crime. “Por amor”, era essa a declaração. O vídeo com a confissão se espalhou na web. Os habitantes se espantaram e foi nesse momento que reconheceram o andarilho. Mas o furor passou e sobrou apenas a versão do homem violento. Ninguém discutiu se ele era mais uma vítima do uso das drogas, nem tampouco se preocupou em voltar os olhos para os próximos andarilhos da cidade. É claro, a morte de desconhecidos não nos atinge muito menos nos comove mais.          

Julho de 2014.

Que os jovens continuem eternos indecisos a se tornarem mestres dos saberes formados

O fim do Ensino Médio representa aquela época da vida em que é preciso tomar uma decisão. Os 17 ou 18 anos, muitas vezes, não é o bastante para que a escolha de uma profissão aconteça. Mas não importa, as pressões familiares e sociais impelem o estudante a caminhar ou para o mercado de trabalho ou para as conhecidas provas de ingresso nas universidades: os vestibulares.

 

A ansiedade é o primeiro sentimento que os acompanha naquele momento. Tem aqueles que, dominados pelo nervosismo, estudam até o último segundo em frente ao portão da universidade. Quem sabe um ou outro conceito não entra no cérebro ali, na pressão dos últimos minutos. Os sonhos que carregam, porém, é sempre a esperança que os move para aquele lugar. Para os receber, os balões dos cursinhos, repórteres de rádios, um ou outro carro de emissora de tevê. Sim, eles são a notícia da decisão e do caminho que percorrem.

 

Apesar do ônibus que atrasa, do despertador que falha logo hoje, da barriga que decide mostrar o monstro que carrega justo naquele instante, ali estão. Até o pessoal mais velho enfrenta o obstáculo daquelas provinhas. No vestibular 2015 da UEPG, foram inscritos mais de 20 candidatos com mais de 50 anos e três com mais de 60. Tudo apresenta o colorido de novas possibilidades. Esse arco-íris de esperança, porém, costuma ser desmoronado tempos depois do ingresso na instituição. É a famosa felicidade clandestina. O sonho de outrora vira o pesadelo de agora.

 

Que as ideologias arcaicas e enrustidas nos professores mais velhos não os impeçam de realizar os sonhos que têm. Porque a parte mais difícil não é ultrapassar uma provinha de duas ou três horas (que no fundo sabemos que não mede inteligência, mas apenas memória). O difícil é lidar todos os dias, mais tarde, com gente de cabeça feita. O velho Raul já disse que preferia ser “essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”. Que os jovens continuem eternos indecisos a se tornarem mestres dos saberes formados. Saberes que, muitas vezes, não aceitam o novo. E é típico do jovem inovar.

 

 

 

Julho de 2014.

© 2015 por KEREN BOMFIM FOTOGRAFIA. Todos os direitos reservados

 

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