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Na terra dos mortos, quem sobra é o vivo

A morte não atrapalha o trabalho de Roberto Rivelino, só impede que ele veja o jogo. Mas na cidade dos mortos, quem vence, na hora de disputar a cova, é o morto

Ali não há diferença de idade, de cor, nem de sexo e muito menos de classe social. Cercado por um muro baixo, da altura dos ombros de um homem adulto, aquele lugar esconde o mundo de quem um dia acordou cedo, foi ao trabalho, teve família, filhos e se tornou apenas um número nas estatísticas dos vivos. Às vezes nem deu tempo de ficar mais que algumas horinhas no lugar da fome, do sono, do medo e da angústia. Veio a morte e os carregou, tão cedo, para um outro lugar do planeta: o chão dos indigentes do Cemitério Vicentino, de Ponta Grossa.

 

O muro é baixo e o portão azul, estreito. Longa é a estrada que divide o cemitério, logo na entrada, em dois caminhos. Cercado por algumas árvores ressequidas, a estrada mostra que é ali o destino de todo e qualquer ser humano. O céu azul de um dia ensolarado contrasta com a quietude e a solidão do lugar. Uma imensidão de cruzes se mistura com flores reais e artificiais. A gota de orvalho das flores do chão é mesmo artificial. O sol daquele domingo de outono já teria secado um gota de verdade. Só as formigas que passeiam por entre as cruzes é que parecem sobreviver.

 

Assim como a vida tem fim, aquela estrada longa também. Lá no final, uma grande cruz, localizada no lado esquerdo de quem caminha pelo cemitério, marca o início do cemitério. Dizem que é ali que está enterrado o pai de todos os mortos daquele terra. Quem conta é um dos coveiros do cemitério, Roberto Rivelino Rodrigues.

Naquela quinta-feira, dia de abertura da Copa do Mundo no país, o Roberto Rivelino do cemitério também ficará longe do campo, da bola e da tevê. “Se não tiver enterro, a gente tem o intervalo para assistir ao jogo”, conta. Do jogo mesmo, só o que o jornal mostrar mais tarde.

 

Rivelino e o outro companheiro coveiro acabaram de enterrar um corpo. Em média, são feitos quatro enterros por dia e agora é torcer para que ninguém morra mais, principalmente a hora em que o Brasil entrar em campo.

 

 

Lá, o verde-amarelo do centro das ruas não chegou nem chegará. O único colorido é o do céu e das flores do chão. Elas parecem lembrar sempre que, apesar do cimento das cruzes e da solidão dos mortos, estarão sempre ali como acompanhantes. Vez ou outra, uma família aparece com um buquê nas mãos. Ás vezes murcho ou esfacelado. Mas não é isso que importa. Durante algumas horas, dias ou semanas, talvez, é ele que fará companhia aos habitantes daquela cidade.

Não a única companhia, porém. Há dois anos, aproximadamente, um rapaz de 30 anos, “moreno bem barbudo e conversador”, como descreve o coveiro Rivelino, passou a dormir dentro de uma das gavetas.

 

É o Duduca do São Vicentino. Da gaveta, ele precisou sair. Ela tinha dono e um corpo reivindicava o direito de descansar em paz. Duduca teve que migrar para uma coberturinha próxima ao banheiro do cemitério. A sorte não estava do lado do rapaz. Desmancharam a cobertura e hoje ele dorme no banheiro. “Pára dentro do banheiro, dorme lá, é a casa dele”, conta Rivelino.

 

Armando de Oliveira Moraes (é este o nome do Duduca) sabe, no entanto, que não é apenas o banheiro a casa dele. É o cemitério. A mãe dele também está ali, a senhora Araci de Oliveira Moraes. Ela morreu faz tempo, mas é ela quem o protege.

 

Naquela quinta-feira, Armando trabalha, junto com outros homens, na construção de mais 500 gavetas no cemitério. O espaço ali é cada vez mais exíguo e o único cantinho que sobra é mesmo o banheiro.

 

 

Depois das gavetas prontas, Duduca sabe que dificilmente ganhará a disputa com os mortos. Pode até voltar a dormir em uma das gavetas. Se alguém chegar de mansinho, porém, ele terá que sair. É lá que ele vive. E diz estar bem. Mas naquela terra, quem tem prioridade é quem já foi.

Fotos e Texto: Keren Bonfim

 

Matéria escrita em junho de 2014. 

© 2015 por KEREN BOMFIM FOTOGRAFIA. Todos os direitos reservados

 

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