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O estouro da pipoca esconde a falta de regulamentação do comércio ambulante em Ponta Grossa

Detrás de carrinhos ou trailers, ambulantes fazem a vida em Ponta Grossa. Lei que regulamenta o comércio dá suporte apenas para o uso do solo, mas não garante alvará de funcionamento

Uma bolinha amarela que cabe entre o dedo indicador e o polegar. É uma dama lustrosa que não serve para os pés de qualquer jogador, mas só para quem conhece os truques da explosão. Sozinha, porém, não consegue fazer grandes rebuliços. Quando se junta com as demais irmãs gêmeas, banham-se no óleo e são aquecidas por um calorzinho, o estouro acontece. De um pulo, a bolinha se veste de noiva. E são essas “noivinhas” que perpassam pelas mãos do pipoqueiro Sebastião da Silva Portes todos os dias.

 

Em um cantinho da esquina entre a rua Engenheiro Schamber e a Av. Vicente Machado, Tião da Pipoca, como é conhecido na cidade, instala o carrinho azul ‘Q. Delícia’. Por dia, ele leva ao fogo 5kg de pipocas, em média, o que equivale a aproximadamente 10 pacotinhos de meio quilo.  E ele garante: “A cada 10 pessoas, nove comem pipoca”. Com o movimento diário do carrinho, Tião mantém uma renda extra nas economias de casa.

 

As primeiras pipocas que estouraram na panela não foram lá grande coisa. Algumas queimaram e viraram mesmo piruá. Mas Tião era teimoso. Ele observou durante um tempo o trabalho de outros pipoqueiros. Alguns se negaram a ensinar a “arte da pipoca”. Sozinho ele foi, aos poucos, descobrindo os segredos do preparo. E conseguiu montar o próprio negócio. Participou de algumas palestras no Sebrae e se tornou um microempreendedor individual.

 

Abre banco, fecha porta, arruma fila, ajuda ali, ajuda aqui. Era essa a rotina do pipoqueiro como vigilante de banco antes de se aposentar. “Mudei completamente da profissão que exercia para uma outra que não sabia. E me dei bem!”, relata. Atrás do carrinho azul ele está há cinco anos. E foi lá, camuflado entre as pipocas que se destacam no vidro, que o Sr. Sebastião, de 58 anos, conseguiu ajudar a filha nos estudos: “Eu tenho minha fonte de renda, mas esse carrinho de pipoca aqui deu a universidade para a minha filha”.

 

Por cinco anos, a filha do pipoqueiro trabalhou junto com ele enquanto cursava Farmácia na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Hoje o Sr. Sebastião perdeu a companheira. A menina foi estudar mestrado e pós-graduação em Florianópolis. No lugar, porém, ficou a namorada do pipoqueiro.

 

Depois de se aposentar, o Sr. Sebastião percebeu que precisava exercer alguma atividade para não deixar a cabeça parar. E por que não estourar pipoca, se era o alimento que ele mais via no cotidiano? Na cena da novela, no filme, no cinema do shopping, no circo, na porta das igrejas, das escolas e dos estádios, lá estavam as “noivinhas”. Aí ele pensou: “A pipoca é um alimento que eu acho que veio ao mundo antes de nós”. Nasceu o carrinho ‘Q. Delícia Pipoca Doce e Salgada’.

 

Não é só o colorido da pipoca doce que faz os dias do pipoqueiro melhores. É justamente esse contato com as pessoas. Por ser um alimento que abrange todas as faixas de idade, a pipoca conquista as crianças pelo olhar e os mais velhos pelo sabor. O pipoqueiro pode estar atrás do carrinho, mas nunca está sozinho. “Tem pessoas que nem sempre vem pra comprar pipoca, mas porque gostam de conversar”, afirma.

Desde o mendigo até o mais rico, o que eles querem é pipoca

“Teve o casamento de pessoas que nem se olhavam e daqui a pouco começaram a namorar no carrinho de pipoca”.

 

Maria Cristina Correia, pipoqueira há mais de 20 anos

E foi de conversa em conversa, nos mais de 24 anos de profissão, que a pipoqueira Maria Cristina Correia pode participar de várias histórias. No início, ela e o esposo vendiam pipoca em frente ao Bloco B da UEPG. Entre os diversos clientes que compravam a mercadoria, dona Maria presenciou o romance entre alunos e alunas. “Teve o casamento de pessoas que nem se olhavam e daqui a pouco começaram a namorar no carrinho de pipoca”, relembra.

 

Trabalhar atrás do carrinho foi uma alternativa que ela e o marido encontraram para lidar com as despesas diárias. O aluguel da casa onde a família morava, gastos com água, luz e telefone fizeram com que a família optasse pelo trabalho com as pipocas. “Eu criei todos os meus filhos debaixo do carrinho”, garante. Hoje a filha mais velha da Dona Maria tem 23 anos, é casada e também tem filho. Mas, quando os pais dela iniciaram o trabalho como pipoqueiros, Dona Maria recorda que a moça era uma bebezinha de cinco meses.

 

Naquela tarde de terça-feira, a pipoqueira aguarda a saída dos alunos de uma escola próxima. Passa um carro e pede um pacotinho de pipoca doce. De venda em venda, ela consegue atender até 70 pessoas por dia. As amizades que constrói é o que importa para a pipoqueira: “Aqui chega desde o mendigo até o mais rico. Para eles a gente não tem diferença, porque o que todos querem é saborear a pipoca”.

 

Quando a noite entra de vez, vai embora. Mas o carrinho fica em um estacionamento a uma quadra dali. Ela vinha a pé empurrando, ficou cansativo. Preferiu guardá-lo ao final de cada tarde.

“Eu criei meus dois ‘piás’ trabalhando na rua. E não me arrependo, porque acho que temos que batalhar dessa maneira”.

 

'Seu' Toninho, presidente da Associação dos Ambulantes Fixos do Calçadão

Ambulantes

não têm

alvarás

para

trabalhar

Assim como o pipoqueiro, os vendedores de churros, lanches, salgados e outros produtos estão espalhados pela cidade. É ali, atrás do carrinho, que muitos deles garantem a sobrevivência. Desde a última contagem realizada pela Divisão do Setor de Ambulantes, há dois anos, 147 trabalhadores estavam cadastrados no município. Desses, apenas três eram pipoqueiros.

 

O serviço de ambulante foi a alternativa encontrada, por exemplo, pelo atual presidente da Associação dos Ambulantes Fixos do Calçadão, Antônio de Lima. “Seu” Toninho, como é chamado pelos amigos, vende salgados há 24 anos. Encontrar um emprego formalizado estava difícil. A solução veio em “boa-hora”. “Começamos naquela época em que todo mundo estava desempregado e não podia trabalhar”, comenta. Ele conta que conquistou muitas coisas boas: “Eu criei meus dois ‘piás’ trabalhando na rua. E não me arrependo, porque acho que temos que batalhar dessa maneira”.

 

Dois anos depois do início das atividades do “Seu” Toninho, no dia 18 de maio de 1992, foi aprovada a Lei nº 4736, que dispõe sobre o comércio ambulante e proíbe a atividade fora de locais estabelecidos. Mas ele e os demais colegas de trabalho já estavam instalados. “A gente lutou sempre para não sair do Calçadão”, afirma.

 

O alvará para exercerem a atividade, no entanto, eles nunca conseguiram. Quando se cadastram junto à Divisão do Setor de Ambulantes, recebem apenas uma autorização para o uso do solo. Por isso, nenhum dos ambulantes paga impostos. “Eles não têm benefícios nenhum porque não têm alvará, não têm nada”, explica a chefe da Divisão do Setor de Ambulantes, Lucinéia Campos.

 

Se a lei não colaborava para que os trabalhadores pudessem conseguir a licença de funcionamento, alguns deles preferiram se tornar microempreendedores individuais (MEIs). São mais de 5000 MEIs existentes na cidade (5.781, no total), segundo dados do Portal do Empreendedor. Os ambulantes não ficam de fora, mas apenas 50 estão cadastrados como ambulantes que exercem serviços de alimentação.

 

Lucinéia explica que foram feitas algumas reuniões com os trabalhadores e alguns aceitaram se tornar microempreendedores. O problema é que, ao aderirem à categoria, não há garantia de regulamentação do funcionamento. “Ele pode formalizar, mas não necessariamente vai estar regular no município, porque a legislação que regulamenta o uso do solo é municipal”, esclarece a chefe da Divisão de Fomento ao Empreendedorismo, Tônia de Mira.

O

que

estabelece

a Lei nº 4736?

“Lavar a mão para servir um alimento é básico. E onde que o ambulante da rua lava a mão?”

 

Tonia de Mira, chefe da Sala do Empreendedor

Conforme o Art. 8º da Lei nº 4736, a atividade de comércio ambulante não pode obstruir as calçadas, nem devem ser liberadas na Av. Vicente Machado nem nas praças públicas do município.

 

Mas esse não é o caso do Tião da pipoca. Ele está lá por autorização do prefeito e por ter conseguido permissão, junto ao Banco do Brasil, para ficar embaixo da marquise da empresa. “Como foi o prefeito que o colocou lá, quem sou eu pra tirar?”, questiona a chefe da Divisão do Setor de Ambulantes.

 

Para que o uso do solo seja liberado, o Setor de Urbanismo da cidade verifica se a atividade será exercida em local particular. De acordo com o chefe da Divisão de Loteamento do Setor, Orlando Sérgio Henneberg, a falta de legislação específica impede que um alvará de funcionamento seja liberado aos ambulantes.

 

É por isso que muitos preferem trabalhar à noite, quando a fiscalização diminui. “Falta local apropriado, não existe uma legislação definida. O ambulante não está regularizado e não pode pagar imposto para uma futura aposentadoria”, reconhece.

 

A sugestão apontada pela consultora do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas de Ponta Grossa (Sebrae), Sandra Costa, é que o ambulante converse com alguma empresa para conseguir um acordo. Se ele exercer a atividade dentro um estacionamento comercial, por exemplo, não traz problemas. “Assim ele está protegido pela lei e pode trabalhar normalmente”, aconselha a consultora.

Começa a escurecer e surgem os primeiros carrinhos e trailers nos espaços mais movimentados da cidade. Segundo Tonia de Mira, o crescimento do número desses trabalhadores é perceptível. O que não pode, conforme argumenta, é o ambulante fixo que atrapalha a passagem das pessoas nas calçadas. “Então ele põe um carrinho que faz espetinho, por exemplo, como o cadeirante transita pela Calçada?”, questiona. Ela logo emenda uma resposta: “Tem que pensar na questão do pedestre mesmo, de mobilidade”.

 

A sala do empreendedor é o espaço para que o “pequenininho” possa se estabelecer como empresário. Além da questão do uso do solo, os ambulantes que trabalham com serviços de alimentação precisam atender às regras sanitárias. Segundo a chefe da Sala do Empreendedor, não existem regras de higiene diferentes do pequeno empresário para o grande. “Lavar a mão para servir um alimento é básico. E onde que o ambulante da rua lava a mão?”, questiona.

 

No Calçadão, os banheiros dos supermercados e as praças públicas atendem aos ambulantes quando a “vontade aperta”. É, “o que a gente queria era um local fechadinho com luz e tudo. Nem que a Prefeitura cobrasse da gente...”, cogita o presidente da Associação dos Ambulantes, Antônio de Lima.

Reportagem produzida em maio de 2014.

 

                     Textos e Fotos: Keren Bonfim

© 2015 por KEREN BOMFIM FOTOGRAFIA. Todos os direitos reservados

 

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