top of page

      Antes todos os caminhos iam. Agora todos os caminhos vêm

Foto: Keren Bonfim

A luz apagou, o marido se foi. Ela vendeu a casa, deixou a cidade e partiu para Curitiba. Lá era o agito e aqueles ônibus que “vão vão vão e não chegam no destino”. Ela decidiu voltar. Não mais para a casa onde morou outrora com ele, mas para o lugar onde vivem hoje 110 pessoas como ela: o Asilo São Vicente de Paula, em Ponta Grossa. E é lá, em uma quinta-feira qualquer, que ela aguarda o café da tarde. Sentada em um dos bancos próximos à capela do abrigo, traz nas mãos uma sacola cheia de panelas e na cabeça uma mente lúcida. Na sexta-feira ela completa 80 anos e já avisou a filha:

 

_ Minha mãe morreu com 87. Quero ver se aguento até os 80!

 

Dona Maria Augusta Ciesla vive há quase dois anos no asilo. Foi difícil no começo. Demorou uns três meses para se acostumar. Ela sabe, porém, que lá tem uma coisa que não existia em Curitiba: a tranquilidade. Apesar de se dar bem com a filha, o genro e o neto Murilo, de 11 anos, “com a idade, a gente quer sossego, né?”. Aquela cidade não era para ela.

 

_ Não gostei, daí falei pra minha filha: eu quero ir pro asilo.

 

Hoje é assim: quando está com saudade, Dona Maria telefona e vai visitar a filha. Quando é a filha quem sente falta, é a vez da Dona Maria receber visitas. Natal e Ano-Novo já estão reservados na agenda da senhora: são dias de retornar ao agito de Curitiba.  E enquanto dezembro não chega, os dias são mais felizes quando tem bingo ou festa no salão.

 

Dias de bingo e festa no salão são os melhores

 

Foi em um dia de bingo que ela ganhou, além de um relógio de parede como prêmio, mais netos. Algumas meninas vieram, gostaram tanto da Dona Maria e por toda a lei a tratam como avó. Tiraram fotografia com ela e agora, no quarto da Dona Maria, tem até um porta-retrato dela com a “neta”.

 

A senhora gosta de conversar e de dançar, principalmente. Mas faz quinze dias, aproximadamente, que Dona Maria fez um cirurgia nos olhos por causa de uma hemorragia. “Sou diabética”. Agora fica tudo um pouco embaçado. Os olhos já não vão tão longe e nem dá mais para assistir ao programa do Ratinho. A lã para fazer os tapetinhos de tricô também ficou num canto. As lembranças, porém, essas estão vivas na memória:

 

_Um dia veio aqui dois gaiteiros e trouxeram pandeiro. E tocaram e, quem queria dançar, dançou. Não dancei por causa da vista. Quando era solteira, dançava. Ihhhhhhhh!!! E arrumei meu marido não era em baile, arrumei de ver ele passando em frente da minha casa. Eu tinha muito namorado de baile porque era “arroz de baile”. A minha mãe, coitadinha, às vezes fico pensando em como eu judiava dela. Durante a festa, ela sentava e fazia assim (acenava com a mão) pra mim e eu nem passava perto pra ela não me chamar.

 

Dona Maria queria saber era de arrumar um pé de valsa. O bolero e o tango eram as danças preferidas da moça. Arrumou um par, mas não foi no baile. Só que tinha um porém: o esposo não gostava de dançar, então Dona Maria parou. O encontro em que se conheceram aconteceu “de passagem’, nos dias em que ele, para ir ao trabalho, cruzava com a moça no portão da casa dela.

 

_ Um dia eu olhei. Ele ficou tão alegre que, num domingo ele passou, já chegou lá e namoramos. Em seis meses nos casamos.

 

Faltava um mês para completar 50 anos de casados quando o marido de Dona Maria morreu. E é nessa lembrança das coisas que ficaram no caminho que ela recupera os personagens da juventude. A ida às cartomantes, o quanto ela “voltava alegre pra casa, cantando”, na expectativa de que a previsão desse certo. Às vezes dava, outras não. O primeiro namorado a cartomante previu. O futuro dele, no entanto, agora cartomante nenhuma diz.

 

_ Eu queria falar com ele, pra ver o que está acontecendo com a vida dele. Ah, mas garanto que está morto ou velho como eu!

 

 

Cena do filme 'Minhas Tardes com Margueritte

Mas como cantou Milton Nascimento, todos os dias é um vai-e-vem e a vida se repete na estação de trem. No asilo também tem gente que vem e quer voltar, tem gente que vai mas quer ficar.  Há aqueles que vieram só olhar. E os que estão a sorrir ou a chorar. Isso tudo é apenas os dois lados da mesma moeda: a vida.

 

Agora é a vez de Dona Eloyna Santos chegar e se sentar no banco onde Dona Maria está. “Essa mora no meu corredor”, segreda Maria. E vai logo emendando papo com a companheira de casa:

 

_Está esperando alguém, Eloyna?

 

_Estou esperando minha irmã, que vem me pegar.

 

_Ah, vai aonde?

 

_Eu não sei.

 

_Ah, é supresa!

 

_Haha, é surpresa!

 

Eloyna tem 83 anos e está ansiosa. Não são nem 13h30 e ela já está segurando a bolsinha de passeio. Arrumada, aguarda a irmã que vem buscá-la para tomar café na casa da sobrinha. Ah, ela conta rapidamente que vive há quase três anos no asilo e logo completa “gosto daqui”. Mas naquela quinta-feira, Eloyna tem pressa e precisa logo confirmar com a secretária quem é que vai leva-la:

 

_Se for minha irmã, é a minha irmã e meu cunhado que me levam. A gente sai com os parentes. Quando é aniversário, Natal, Páscoa, a gente sai. Eles vêm nos buscar, telefonam. Deixa eu ver se...”

 

Não sobra mais tempo para conversas. Ela se vai apressada. Para outros, no entanto, as visitas nunca chegam. É o caso de uma das moradoras que está sentada perto do caminho para os quartos. É Dona Marvina Gonçalves, que segura um radinho. Vaidosa, está toda penteada à espera do lanche das 15h. Todos os dias ela segue uma rotina:

 

_Acordo 7h, sozinha. Já levanto, já arrumo minha cama pra descer para o café. O café é às 8h.

 

Ali ela vive há 15 anos e passa os dias escutando músicas e “conversando com as amigas”. Quando os pais dela morreram, ela foi morar com os primos mas não conseguiu viver na mesma casa que eles. A solução encontrada foi a casa dos idosos. No começo ela até saía de vez em quando para fazer algumas comprinhas na rua.

 

_ Um dia o carro me pegou, quase me matou. Escapei por milagre. Fiquei todo machucada, perna, braço. Desde aquele dia, não saio mais. Quando eu quero comprar uma coisa, peço pra outra.

 

No rádio, uma canção que toca ‘eu vou sonhar...eu vou sonhar’. Marvina abaixa o volume um pouquinho para conseguir escutar melhor as perguntas. “Ah, gosto de escutar rádio porque é a diversão minha”. Ninguém da família vai visitá-la, mas Marvina sabe que às quartas-feiras, sábados e domingos são dias de visitas e que o asilo fica cheio de gente.

Como cantou Milton Nascimento, todos os dias é um vai-e-vem e a vida se repete na estação de trem. No asilo, também tem gente que vem e quer voltar, tem gente que vai mas quer ficar.  Há aqueles que vieram só olhar. E os que estão a sorrir ou a chorar. Isso tudo é apenas os dois lados da mesma moeda: a vida.

Foto: Keren Bonfim

Trabalhar com idoso é usar mais a razão do que o coração     

 

As memórias são diferentes, pois o tempo mexeu com todos e deixou marcas. É por isso que os idosos são divididos por grau, conforme explica a secretária Rosélia Mskalo. Os de grau I são os independentes e que conseguem fazer as atividades básicas, como comer e ir ao banheiro sozinhos. Os de grau II são aqueles que precisam de um certo cuidado, como uma ajuda para se locomover, e os de grau III, cadeirantes e acamados.

 

Por dia, eles recebem seis refeições, segundo Rosélia. Às 7h é o horário que muitas pessoas acordam para ir ao trabalho. Os idosos, contudo, também costumam acordar cedo. Às 8h tem o café da manhã, às 10h o lanche. O almoço acontece às 11h30 e lá por 15h é o horário do lanche da tarde. Às 17h30 tem a janta deles (a sopa) e mais à tarde, um outro lanchinho.

 

São 70 mulheres e 41 homens que residem no São Vicente. A maioria dos idosos estão numa faixa etária acima de 70 anos. Como uma parte da casa funcionava antes como orfanato, a supervisora Marli Aparecida da Silva explica que existem alguns moradores que estão há muito tempo no local.

 

_Têm pessoas que vieram com uns cinco, sete anos e estão aí. Pessoas que nunca saíram daqui.

 

Hoje a inserção do idoso em um asilo é mais criteriosa e segue as normas do Estatuto do Idoso, aprovado em 2003. Fica na incumbência da família, em primeiro lugar, o cuidado com os mais velhos. Caso os familiares não tenham condições, o caso é encaminhado para a assistência social.

 

São poucos os idosos que possuem família no Asilo São Vicente. Segundo Marli, não chega nem à metade. Mas lá eles não estão sozinhos. As visitas de voluntários, grupos de escola e igreja são frequentes. “Uma vez por mês ou dois meses, nós mesmos fazemos uma festa no salão para o aniversariante”, conta a supervisora.

 

Ali, ela sabe que é preciso tato e firmeza na hora do cuidado com o idoso. “Não existe coitadinho. Tem que tratar eles normalmente. Claro, cada um com as suas necessidades”, afirma. Conforme explica, muitas vezes é preciso usar mais a razão que o coração para o próprio bem-estar deles.

Foto: Keren Bonfim

Resgatar vínculos de socialização é o ponto de destaque no trabalho com idoso

 

Na Casa do Idoso Paulo de Tarso, residem apenas homens. São 30 no total. O Sr. Pedro Fragoso, de 62 anos, é um desses idosos. Ele aceita o convite para conversar um pouquinho, mas é de poucas palavras.

 

Durante alguns minutos de bate-papo, ele relata que trabalhou por vinte anos como carregador. Viajava pelas cidades vizinhas carregando feijão, batata e noz. Foi quando o patrão morreu e ele precisou, depois de um tempo, ir morar na Casa do Idoso. Sobre os filhos, ele não entra muito em detalhes. Conta apenas que tem duas mulheres e dois homens. E que, como trabalhou em uma floricultura quando era jovem, agora, ali, lida com o jardim da casa.

 

É justamente a comunicação um dos pontos que a assistente social, Débora do Vale, destaca no trabalho com os idosos: “A maioria são lúcidos, mas o problema é a comunicação. Às vezes eles não entendem, às vezes não ouvem o que é perguntado e às vezes não querem responder”.

 

Lá há espaço para que algumas atividades sejam desenvolvidas de acordo com o gosto do morador, como os cuidados com jardins. Alguns saem para ir à igreja. O Sr. Pedro, por exemplo, é católico e vai às missas na igreja da vila 31 de Março. Para a assistente e o diretor da Casa, Osni da Cunha, lidar com idosos é fortalecer o processo de socialização em busca do resgate dos vínculos entre os próprios abrigados e a família deles.

 

O idoso paga pelo serviço de acolhimento?

 

De acordo com o que estabelece o Estatuto do Idoso, se o idoso estiver em uma entidade filantrópica (sem fins lucrativos), pode ser cobrado um valor para ajudar o seu custeio que, no entanto, nunca poderá ser maior do que 70% (setenta por cento) de qualquer benefício que o idoso receba.

 

E é nessa fase da vida que, conforme escreveu Mário Quintana, se antes “todos os caminhos iam. Agora todos os caminhos vêm”.

Cena do filme 'Minhas Tardes com Margueritte

 Reportagem produzida em agosto de 2014.

 

  Keren Bonfim

© 2015 por KEREN BOMFIM FOTOGRAFIA. Todos os direitos reservados

 

bottom of page